Futebol
Saudades daquilo que não vi
Meu camarada Fred, que vez ou outra comenta aqui neste humilde blog (e de quem já ouvi sandices absurdas em relação ao Ronaldo, mas eu perdôo), esteve recentemente na Argentina, em um
tour de force pelos estádios de Buenos Aires e,
in loco, conferiu algumas partidas nas canchas do país do futebol. Fanático pelo Independiente de Avellaneda, maior ganhador da Taça Libertadores da América, ele postou em seu álbum no Orkut algumas fotos da mitológica dupla Ricardo Bochini-Daniel Bertoni, verdadeiros heróis do povo
rojo que tanto fizeram pelo clube na década de 70, e vê-los com seus cabelos desgrenhados e camisas simples me fizeram pensar na distância que vai daqueles para estes de hoje. Se Bertoni e Bochini eram os ídolos da massa, é porque não se distanciavam dela; eram parte indissociável de um todo: torcida, jogadores e clube. Os
hinchas faziam a arquibancada pulsar; os craques em campo davam o sangue por aquela gente; a instituição tornava-se ainda maior por contar com quem honrasse seu escudo, tanto no gramado quanto fora dele. O futebol exibia ali toda a sua vocação de esporte mais popular do mundo porque quem o praticava como profissão também vinha do
pueblo. Mesmo geniais como eram, a dupla se confundia com todos aqueles loucos que berravam seus nomes e comemoravam seus gols porque eram exatamente como eles. Estavam ali representando seus iguais, e dispostos a trazer alguma alegria a eles no final de uma sofrida semana de trabalho.
Mas, se algum tempo atrás poderíamos tomar uma cervejinha com Serginho Chulapa ou Sócrates depois de treinos de seus respectivos times, em algum boteco nas imediações de seus CTs, o que encontramos hoje é uma distância cada vez maior, e tão mais proposital quanto absurda, entre jogadores e torcedores. Estes primeiros agora são totens intocáveis, escondidos em carros blindados e transformados em verdadeiros bonecos de cera nessas patéticas entrevistas coletivas; os segundos, apenas potenciais consumidores dos produtos da marca para a qual torce. Isso, não são mais times, são marcas. Ouvimos muito por aí "a marca Corinthians", "a marca Flamengo", "a marca Grêmio"... Vemos, dessa forma, vigorar um grotesco sectarismo nas arquibancadas do mundo, já que a transformação de clubes em empresas encarece merchandising e ingressos e elitiza o que sempre possuiu alma orgulhosamente popular. Assim, não existe mais quem acompanha o futebol, e sim quem o consome. Esses é que são valorizados pela ordem atual: os que vão aos jogos dispostos a deixar seu carro em um estacionamento próximo, pagam entradas nas cadeiras cativas para a namorada ou à família, envergam camisas oficiais compradas em shoppings ou via Web a preços exorbitantes, comem nos restaurantes montados dentro do estádio... Se não quiserem se deslocar, podem adquirir o
pay-per-view de algum canal por assinatura. Sangue, suor e lágrimas? Não mais. O conforto é a regra vigente - para quem pode pagá-lo, lógico.
E os atletas também embarcaram nessa. No recente campeonato sub-20, pude ver a mudança estampada nos rostos da molecada: muitos dos que ali estavam, na seleção brasileira ou em outras presentes ao certame, eram evidentemente bem-nascidos, filhos de uma elite que, por tanto tempo, repudiou a grosseria e as perspectivas pouco alvissareiras inerentes à carreira e ao mundo futebolístico. Hoje, colocar o filho numa escolinha representa um investimento. Pais vibram internamente com a possibilidade de um filho tornar-se "craque" bem sucedido. Não à toa, muitos dos que ali corriam já estavam bem encaminhados a clubes como Inter de Milão e Barcelona. O pragmatismo dos "planos de carreira", usuais em empresas de grande porte, atinge de forma incisiva o jogo, cada vez mais mecanizado e impessoal. Portanto, relembrar mestres como "El Bocha", com seu visual tosco, alma operária e grande, enorme, gigantesco talento, é relembrar também uma representação pura do futebolista que se perdeu nas cruéis alamedas do tempo. Precisamos, mais do que nunca, dessa agridoce nostalgia.
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