Ernesto Sobocinski Marczal
No último final de semana de maio, na abertura do Campeonato Brasileiro, nenhuma partida disputada no país chamou mais atenção do que Santos e Flamengo. Claro que o apelo do jogo foi potencializado pelo anúncio da saída de Neymar ao futebol europeu, o que tornaria aquele embate o seu derradeiro pela equipe da baixada santista antes de sua transferência para o futebol espanhol. Contudo, o foco deste artigo não está na jovem referência do futebol nacional dentro e fora dos gramados, até porque o assunto tem saturado os veículos de mídia e povoado intensamente as colunas, mesas redondas e debates entre os diversos comentaristas e jornalistas esportivos. O motivo deste texto surge de outro aspecto da partida (não, não foi a qualidade excepcional apresentada pelas equipes em campo...): a apresentação do novo palco futebolístico de Brasília para a Copa do Mundo e das Confederações, o renovado Mané Garrincha.
Tanto quanto às vultuosas quantias dispendidas para sua construção (estimados 1,5 bilhões) a inauguração do estádio com sua primeira partida oficial trouxe um novo dado econômico, bem mais modesto, mas também significativo, 6,9 milhões, o maior montante já obtido no futebol brasileiro até o momento. Assim como a arrecadação, o valor dos ingressos também foi igualmente surpreendente, variando entre incríveis 160 e 400 reais (sem contabilizar as baratíssimas meias entradas para estudantes...). Em troca de todo este investimento (pois investimento o é) o espectador se desloca, ainda com dificuldade, ao estádio em busca de algo mais do que desfrutar de uma simples partida de futebol e torcer por seu time. E este foi o dado que despertou parte da tentativa de reflexão a qual se propõe este texto, a mudança do comportamento em um dos atos simultaneamente mais banais e emblemáticos do futebol: frequentar o estádio. A temática não é nova, e já foi posta em discussão por diferentes prismas por vários autores. Desde a violência, contemplada nos debates quanto as transformações dos estádios ingleses nos anos 1980, até a mais recorrente discussão sobre o esporte espetacularizado, que se adéqua às conformidades do capitalismo em suas constantes reconfigurações, as quais, em certa medida, nos forçam a reavaliar constantemente a frívola alcunha do moderno.
Da mesma forma, o Mané Garrincha (agora longe de figurar como a alegria do povo que constituía seu saudoso homenageado) não represente o primeiro exemplo dessa questão no Brasil, já que a referência lançada pelos estádios europeus e (por que não?) pelas arenas esportivas estadunidenses em um sentido mais amplo, já se encontram estabelecidas a praticamente duas décadas. Além dos outros estádios já reformulados (como o Mineirão e o Maracanã, entre outros) e aqueles desenvolvidos especialmente para o mundial (como a Arena das Dunas, a Arena Amazônia, entre outros) podemos visualizar as transformações nos projetos lançados a pelos próprios clubes, caso de Grêmio e Palmeiras e, ainda mais emblematicamente, do Atlético Paranaense, com a ?primeira versão? (curiosamente, inconclusa) da Arena da Baixada, erguida a mais de uma década! Vestígios de uma tentativa de mudança no tratamento do torcedor que já não é recente, e cuja iminência da Copa só coloca em evidência novamente.
Ademais dos estádios, medidas como o Estatuto do Torcedor, com dez anos recém completos, constituem indícios importantes na apreciação da questão. Exemplos disso estão nas ponderações a respeito do estatuto. Em uma visão retrospectiva, uma de suas contribuições mais celebradas por alguns especialistas foi justamente a equiparação jurídica do torcedor a figura do consumidor, de modo a reconhecer seus direitos e viabilizar caminhos de reivindicação legal.
As transformações diluídas na arquitetura e desenvolvimento dos estádios rementem não só a um novo padrão de comportamento do torcedor, mas emulam as próprias mudanças verificadas no espaço social nos últimos anos. O torcedor, alçado a esfera de consumidor, incorpora também este novo papel e assume um posicionamento político diferenciado com relação a sua experiência com o esporte. Daí, ao menos em parte, surge o investimento de seu pagamento no ingresso. Ao adquirir um acento no estádio, ao escolher apreciar uma partida in loco, o espectador passa a exigir também o reconhecimento de sua individualidade com a valoração de seu desfrute pessoal. Ainda que o estádio continue a figurar como um lugar eminentemente público em sua acepção quantitativa, como ambiente coletivo e partilhado por milhares de pessoas, descontando outros tantos que acompanham anonimamente à distância o espetáculo por intermédio dos mais variados mecanismos de comunicação, sua acepção massiva se descaracteriza gradativamente. Pouco a pouco, a reconfiguração da postura política dos sujeitos na sociedade se faz sentir na própria conformação dos espaços do estádio, nas exigências sobre sua estrutura e funcionalidade. A massa amorfa, paradoxalmente desforme e uniforme, é harmonizada (enquadrada?) na padronização da disposição dos lugares, dos corredores e das vias de acesso. O conjunto indiscernível que compõe a multidão é atomizado na localização única de cada acento numerado, tornando-o um espaço particular e incompartilhável. A emotividade quase inconsciente é substituída pela racionalização da experiência singular de cada um, ciente e zeloso por sua individualidade. Ainda assim, em instantes cada vez mais esparsos, a passionalidade do envolvimento com o esporte, bem como a postura relativamente romântica e politicamente resistente de parcela de seus aficionados, se mantém capazes de borrar os limites impostos à comoção coletiva através da exasperação catártica da afetividade (em tempo: os torcedores do Atlético Mineiro na última quinta-feira que o digam...).
Trata-se, em certa medida, de uma reconfiguração das dimensões concernentes a dinâmica publico / privado, cujos desdobramentos políticos também estão longe de figurar como algo inexplorado. Suas implicações já foram contempladas nas reflexões de diversos pensadores, tais quais Hannah Arendt e Jürgen Habermas, isso apenas para nomear dois dos grandes estudiosos do último século. Contudo, suas apreciações diante das transformações do universo futebolístico, como fenômeno sociocultural cuja historicidade está atrelada às mutações do capitalismo contemporâneo, ainda carecem de análises e problematizações variadas, mais complexas e aprofundadas. Afinal, esta frágil perspectiva de uma fragmentação da manifestação pública proporcionada pela aglomeração massiva, indistintamente intersubjetiva, dos indivíduos nos estádios, dando lugar a exaltação de sua experiência subjetiva privada, demarca apenas uma das possibilidades de interpretação das relações políticas mais amplas que permeiam o campo esportivo. (Fica a dica!).