Crônica da Semana
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Crônica da Semana


O campo é a rua

por Jhonatan Uewerton Souza, mestrando em História



Em meio à Copa das Confederações, poucas pessoas falam de futebol na padaria. As manifestações que tomaram conta do Brasil desde a semana passada, organizadas nas grandes capitais, mas também em cidades pequenas, espalhadas pelos quatro cantos do vasto território nacional, abafaram os gritos de gol e o substituíram por outros cantos, alguns deles com claras referências às arquibancadas.

As primeiras manifestações que chamaram maior atenção dos veículos midiáticos eclodiram em São Paulo e pautavam, então, a revogação do reajuste das tarifas do transporte público. Os atos eram organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL), fundado em 2005, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, fruto de debates que ocorriam desde 2003, ano da "Revolta do Buzu", que teve Salvador como palco. Mais recentemente, a questão do transporte público já havia motivado protestos em Natal (2012) e em Porto Alegre (2013). A violência policial nas manifestações de São Paulo, o descaso das autoridades municipais e estaduais, que àquela altura se encontravam em Paris, e uma virada na cobertura midiática das mais abruptas de que tenho recordação, contribuíram para que as marchas se espalhassem por outras cidades, em solidariedade aos manifestantes paulistanos. Junto com a expansão geográfica, assistimos a uma expansão das pautas, entravam em cena cartazes pedindo a desmilitarização da polícia e questionando a aplicação de dinheiro público na construção de estádios para a Copa do Mundo. O slogan "Não é só por 0,20 centavos" ganha o mundo e dezenas de países organizam atos públicos em apoio aos brasileiros. 

Motivada pela Copa das Confederações, a FIAT lançou um novo comercial. O refrão, cantado por Falcão, d'O Rappa: "Vem pra rua, porque a rua é a maior arquibancada do Brasil", foi logo apropriado pelos manifestantes, assim como diversos outros elementos da cultura de massas, como as mascaras do Guy Fawkes ou hinos de torcidas do futebol. O famoso: "Ô, vamos ganhar porco!", da torcida do Palmeiras, tornou-se "Ô, o povo acordou!". Outro hino, o: "Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor!", famoso por ser entoado nos jogos do selecionado nacional, é cantado na rua como palavra de ordem. Se os cantos reforçam a associação entre rua e arquibancada, a progressiva espetacularização das manifestações, propõe uma nova metáfora, a dá rua como campo. Filmadas por todos os ângulos, transmitida ao vivo, em horário nobre, pela Globo. Motivação para dicas de moda de Glória Kalil e músicas do Latino, as manifestações de rua cresciam, em proporção e em pautas. Tornaram-se verdadeiros espetáculos. Espetáculos que contam com atores distintos, às vezes opostos, sendo a rua o campo de disputas. A corrupção passou a ser um dos temas mais comentados. O MPL, depois da conquista de sua pauta, a revogação do aumento da tarifa de transporte público em São Paulo e no Rio de Janeiro, deixou de organizar os protestos nessas cidades, que, aliás, já tinham ganhado novos líderes há algum tempo. As manifestações são, agora, organizados por múltiplos grupos - em Curitiba, na sexta-feira (21/06), ao menos três marchas distintas e uma farofada (evento lúdico) tomaram as ruas da cidade em trajetos distintos -, perfis fake no Facebook começaram a organizar eventos e vídeos do grupo Anonymous Brasil passaram a ter grande repercussão entre os manifestantes (na verdade, o próprio grupo está dividido e negou recentemente, que tenha produzido alguns vídeos que lhe são atribuídos). O movimento de massas apresenta várias pautas, do "cansei" ao "quero mais". Ler os cartazes na manifestação, é deparar-se com propostas que vão da revolução socialista, à volta dos militares. Do não ao estatuto do nascituro, à proibição do aborto. A própria PEC 37, cuja revogação parecia ser um consenso até algumas horas atrás, recebe alguns apoiadores, que postam nas redes sociais declarações da OAB e a entrevista, no Programa do Jô, com o jurista Ives Gandra. 

Entretanto, pelo que percebi desde a primeira manifestação, se há um canto que une todos os grupos, mesmo que momentaneamente, esse canto é: "Da copa eu abro mão quero...", o complemento fica ao gosto do freguês. Os únicos que parecem discordar disso, são Ronaldo, Pelé e Aldo Rebelo, que protagonizaram algumas das declarações mais infelizes dos últimos dias. Portanto, mesmo não sendo o único foco dos debates, os gastos com a Copa do Mundo são um dos temas fundamentais nessas manifestações, o que pode ser percebido também na espacialidade de alguns atos. Aqueles organizados nas cidades-sede da Copa das Confederações, notadamente em Fortaleza e Belo Horizonte, escolheram as proximidades dos estádios como locais de término ou concentração das marchas, muitas vezes questionado o conceito de "território FIFA" e a utilização do aparato policial do Estado para a proteção dessa área de exceção. 

Se a estratégia da FIFA era empurrar seus megaeventos para países com instituições e democracias mais frágeis, dispostos a aceitar suas imposições, a fórmula tem se mostrado equivocada, tanto na África do Sul - que assistiu a greves e manifestações durante a Copa de 2010 - quanto no Brasil. Nada me faz crer que na Rússia, apesar das permanências de uma cultura política autoritária, será diferente. A entidade terá que, mais cedo ou mais tarde, repensar a monumentalidade e as exigências absurdas aos países-sedes para a realização de seus torneios. De outro modo continuará tendo seus carros incendiados e seus líderes vaiados. Ou repensa, ou então ter "um regime ditatorial" passará a ser pré-requisito para as candidaturas a país-sede. 

Do ponto de vista do Brasil, a intensificação da democracia parece ser uma questão central. Ela poderia ter começado já no momento da candidatura a país-sede, como lembra Oliver Seitz, em artigo publicado no Blog do Juca Kfouri. O exemplo vem de outros locais, que organizaram ou organizarão plebiscitos para decidir se concorrem para sediar megaeventos, como Munique (que decidirá se participa da candidatura a cidade-sede para as Olimpíadas de 2022), Vancouver (2003), Graubunden (2010), Berna (2002) e Denver (1976). Aliás, plebiscitos e referendo precisam ser mais comuns. Se a memória não me trai, apenas um plebiscito e um referendo foram realizados desde a constituição de 1988, respectivamente, o que decidia sobre a forma de governo, em 1993, e o do desarmamento, em 2005. Outros projetos, como o orçamento participativo, precisam ser ampliados e as relações financeiras entre setores públicos e privados - para a construção de estádios, mas também para outros fins, como é o caso do transporte coletivo - tem de ser melhor esclarecidas, seja em nível nacional, estadual ou municipal. As demandas da rua, contraditórias e conflituosas, como em qualquer movimento de massas, precisam ser canalizadas, e canalizá-las exige uma luta à parte. A rua virou campo, é dia de jogo no país do futebol e eu não me arrisco a dar palpite sobre o resultado.



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